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Fragmentária

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  de Ana Claudia Araújo de Lima Antes de abrir os olhos, senti na boca o gosto amargo que vinha do estômago e ouvi sua voz firme e carinhosa chamando meu nome: – Está na hora de acordar. Fiz um chá de cidreira para você. Tem que tomar enquanto está morno. Vem, vamos levantar e sair um pouco deste quarto! O corpo pesado parecia não ser meu. O quarto tinha pouca luz e era pequeno, mas hoje parecia menor ainda. Estranhei o silêncio da casa e logo imaginei que meus irmãos deviam estar na escola. Mamãe não me acordou porque devo ter passado mal durante a noite. O lado bom de ficar doente é poder estar com ela por mais tempo e só para mim. – Estou fazendo uma canjinha bem aprumada para o almoço. A galinha já está no vinho d'alho e daqui a pouquinho vou colocar para cozinhar. A manhã já estava alta. Na cozinha, a luz do sol chegava mais intensa e o mormaço era mais forte, porque se juntava com a quentura vinda da brasa do fogão. O peso dos olhos sonolentos não me deixava abri-los ...

Não passou de um sonho

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  de Andrea Lucy dos Santos Neves Joana tem 13 anos. É uma menina do interior de Minas Gerais onde todos se conhecem, gosta muito de conversar com sua irmã Jane, de 18 anos. Elas falam sobre bordado, costura, receitas e serviços domésticos. Parece que o modo de educar as meninas não muda, começam aprender o serviço de casa muito cedo, passar, lavar, cozinhar. Como se toda mulher precisasse saber disso para esperar por um marido. Jane sempre observava sua mãe fazendo os serviços com muito capricho, tudo muito limpo, muitas vezes deixava de sair e aproveitar a vida, era escrava dos serviços domésticos. Jane gostava muito de ficar na varanda vendo o movimento das pessoas passando na rua. Um dia cumprimentou um rapaz que passava na rua, no outro dia o Júlio veio conversar com ela e falou que a achou uma  pessoa muito simpática. Júlio resolveu pedir Jane em namoro e conversar com seus pais. Começaram a namorar em casa, era o costume da época, para a moça não ficar falada. Em menos ...

dor de crescimento

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  de Gabrielly Ramos da Silva as pernas dela eram o dobro de mim. o sol se escondia atrás de sua cabeça, e sua silhueta carregava graça. meus silêncios eram o dobro dela, que andava a passos exagerados, como se só pudesse prestar atenção à sanfona em suas mãos e à cantoria estridente que entoava. “olha”, cantava ela, “eu nunca parei de crescer, mas também nunca deixei de brincar”. sorria e balançava a calça colorida ao vento. sorria e balançava os cabelos coloridos ao vento. a calçada que ocupávamos parecia um grande caminho. a figura à minha frente era tão alta que me deixou fascinada e amedrontada. os sons que fazia tornava as buzinas carros de propaganda gritos de comércio velocidade do mundo menor. precisei inclinar o queixo pra cima para encará-la. eu, tão pequena… e ainda menor que eu, mas tão grande para mudar o que se seguiria, era a pedra que estava no caminho. sim, havia uma pedra no caminho, de formato hexagonal e tão assustadora como a palavra hexagonal indica. a moça c...

O Pé de Bananeira

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  de Weslane da Silva Santos Saiu de casa sem casar. Depois de tanto estudar, exercia a profissão que amava. Sua mãe sentia orgulho da mulher independente que ela havia se tornado, mas Regina ainda fazia muitas perguntas e, por não encontrar respostas, teve medo enquanto encaixotava o pouco que lhe pertencia. Foi morar no alto. Havia uma parede vermelha, cheiro de eucalipto e da janela se via verde, azul e rosa. Ainda não se sentia em casa. Chorou. Não pertencia àquele lugar, mas fazia poesia para parar de chorar.  Enquanto experimentava poesiar, reconheceu que sua casa é onde o seu coração está, lembrou que já morou em tanto lugar: em abraços, sorrisos e canções. Acreditou que era o seu próprio lar, não teve mais dúvida: ali também seria a sua casa! Colocou as fotos no lugar, pendurou quadros e bilhetes, arrumou a sala com um tapete; na parede vermelha, agora tinha verde. Trouxe música, cheiro de alecrim e manjericão (suspirou) e aprendeu a fazer pão. A chuva trazia o cheiro ...

Celeste

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  de Daniela Rodrigues Viana Duarte Ela era magrinha. Com uns bons acessórios, se fazia alta, esbelta, andava por toda a cidade para compromissos e por lazer. Em tempos de secura, suas articulações rangiam por falta de hidratação; quando chovia, ficava exposta às sujidades que a água espalhava. Vivia para auxiliar as pessoas, acompanhava-as até seus destinos e aguardava quanto tempo fosse necessário para acompanhá-las de volta. A não ser quando, por ventura do descaso, outra pessoa demandasse sua serventia. Sua companhia era melhor aproveitada, em especial, pelas mulheres, é claro. O mundo feminino tende a esse poder de apoio mútuo, quando não são sequestradas de si e das suas, isso é um fato tanto na Terra quanto no extraplano. A Divindade, plenamente ciente disso, apresentou-lhe uma mulher que queria sair para conhecer o mundo, mas que se irritava com o que havia nele. Uma mulher que nem saía de casa, pois não dava conta de canalizar seus incômodos, tampouco de aproveitar o...

Entre Memórias e Sonhos

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de  Sabrina Tancredo Nogueira Ela chegou em uma tarde. Não esperava! Era linda, pequena e graciosa com cabelos em laranja e amarelo. Seus olhinhos vivos e inteligentes brilhavam. Ela veio guardada em uma bolsinha de pano marrom e ficavam de fora somente sua cabeça e bracinhos, dessa forma, ficava ainda mais bonita. Fiquei feliz demais! Foi a mãe do meu pai que morava muito longe que me mandou de presente. Não a conheço, tenho uma foto dela. É o que torna este presente mais especial! Depois desse dia, a Emília, minha mini boneca de pano, ia comigo para todos os lugares. Eu dormia e acordava com ela. Contava-lhe todos os meus problemas e segredos, os beliscões que levava da minha bisavó. Meus pais eram separados e eu morava com meus bisavós. Em frente à minha casa havia uma linha de trem muito ativa na época, minha irmã e eu passávamos o dia brincando nela. Nos equilibrávamos em seus trilhos, pulávamos de dormente em dormente; às vezes caíamos, mas aquela linha era nosso parque de di...

A Certeza do Querer

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  de  Reni Felina da Silva Flegler Perdida em seus pensamentos, vivia numa pequena cidade do interior uma mulher formosa e simples. Usava sempre vestidos curtos que realçavam ainda mais a beleza daquele corpo moreno. Todos da pequena cidade a conheciam para além de sua beleza; também era conhecida por fabricar, com suas próprias mãos, sorvetes que eram deliciosos, amados pela garotada do bairro. Os sorvetes divinos eram o argumento usado em dias de sol por aquelas crianças para irem até a sorveteria. Rosa vivia para o trabalho, não tinha tempo para o que suas amigas chamavam de “curtir a vida”. Sua vida era de casa para o trabalho e do trabalho para casa. A mãe de Rosa, vendo-a trabalhar tanto, em toda oportunidade que tinha, fazia questão de lembrar à Rosa que ela precisava arrumar um marido. A moça não gostava das cobranças , mas preferia manter o silêncio a começar uma guerra com a mãe. No fundo, mas sem dizer, a mãe admirava a determinação e o esforço da filha, que, com s...