Celeste
de Daniela Rodrigues Viana Duarte
Ela era magrinha. Com uns bons acessórios, se fazia alta,
esbelta, andava por toda a cidade para compromissos e por lazer. Em tempos de
secura, suas articulações rangiam por falta de hidratação; quando chovia,
ficava exposta às sujidades que a água espalhava.
Vivia para auxiliar as pessoas, acompanhava-as até seus
destinos e aguardava quanto tempo fosse necessário para acompanhá-las de volta.
A não ser quando, por ventura do descaso, outra pessoa demandasse sua
serventia.
Sua companhia era melhor aproveitada, em especial, pelas
mulheres, é claro. O mundo feminino tende a esse poder de apoio mútuo, quando
não são sequestradas de si e das suas, isso é um fato tanto na Terra quanto no
extraplano.
A Divindade, plenamente ciente disso, apresentou-lhe uma
mulher que queria sair para conhecer o mundo, mas que se irritava com o que
havia nele. Uma mulher que nem saía de casa, pois não dava conta de canalizar
seus incômodos, tampouco de aproveitar o que havia de bom, do trivial ao
excêntrico.
A primeira contava com muitos quilômetros rodados; as mais
variadas ruas, cidades e países estavam carimbados no histórico de vida. A
segunda queria sair para conhecer o mundo, mas se irritava com o que havia
nele. A primeira se dispunha a ajudar, a segunda precisava de ajuda. Como a
combinação de queijo com goiabada, elas foram morar juntas.
De pouco a pouco, de esquina a esquina, praça a praça, foram
juntas. A primeira conhecia alguns novos lugares, a segunda tinha todos os
lugares como novidade. Durante o cotidiano da semana, preparavam-se para a
próxima aventura, porque era assim que encaravam, mesmo sem sair do bairro.
A primeira seguia se sentindo realizada, pois rodava e
ajudava. A segunda se irritava com o que via pelo mundo, mas continuava porque,
agora, ela era capaz de enxergar as cores das plantas, para além da frequência
com que eram asfixiadas pelo concreto; sentir a brisa que revigorava seu
espírito, para além dos vários poluentes que pairavam no ar; se encantar com a
curiosidade das crianças que pulavam e buscavam entender tudo com o olhar
penetrante e com as perguntas que irritavam gente grande que tinha pressa.
O bairro, enfim, fora mapeado, todos de sua vizinhança
também. Surgiu a nova proposta: ir ao outro lado da cidade, lá onde parece não
haver problemas, tudo flui, muitas árvores são cultivadas, não se vê lixo, o
tempo não é curto. Exatamente pelo cenário ser este, a irritadiça o evitava,
“eu pisar lá? pra quê? jamais!”, ela diria. Seu incômodo vinha do medo, medo de
parar de esperançar, medo de estagnar e se entregar ao ressentimento, porque
como poderia existir um lugar onde tudo parece estar tão bem, enquanto em
outros se exigem esforços para sentir-se minimamente bem?
Em respeito e consideração à sua companheira, que estava
entregue há tanto tempo, primordialmente, para acompanhá-la aos quatro cantos,
a proposta foi aceita. Foram juntas. Entre um lado e o outro da cidade, havia
uma ponte divisora de mundos e conectora de terras.
Após alguns segundos de hesitação, atravessaram. Rapidamente
constataram o quão verde ali era, e perfumado, e risonho. Depois de tantos anos
evitando esse contato, aquela que o fazia quis ver mais de perto, para
verificar se o que estava diante de si era verdadeiro, se seus sentidos estavam
mesmo calibrados.
Percebeu que havia algo, não visível a olho nu, silenciado,
mas havia algo. Juntas, vestiram a roupagem de visitantes, como quem não tem
compromisso de vivência no espaço e aguçaram a vista, dando zoom na percepção.
E pois bem, a suspeita foi comprovada. Havia escassez de amor, havia abundância
de tempo, este materializado pelas notas bancárias. As crianças eram
comportadas demais, as pessoas não se cumprimentavam, o desejo ao outro de um
bom dia era desnecessário onde o dia já era garantido. A ponte era mais frágil
do lado de lá, poderia ruir com a presença de pequenos problemas, não se
sustentava.
Voltaram para casa, juntas, com a tranquila consciência de que se irritar não é tão ruim assim, viver sem a devida digestão do mundo, sim. A que se negava a sair para conhecer o mundo, porque se irritava com o que havia nele, cuidou de não deixar Celeste à mercê da secura e das sujidades espalhadas pela chuva, porque necessitaria de sua bicicleta nas milhares de voltas nas quais planejava se aventurar.
CONHEÇA A AUTORA
Daniela Rodrigues Viana Duarte
Mulher branca cis, 28 anos, lgbt, mineira com mais tempo de vida em terras capixabas, cruzeirense, taurina das mais gulosas, graduanda em Licenciatura Dupla em Português e Espanhol pela Ufes, ciclista e ativista pela mobilidade urbana e acesso à cidade, temporariamente assistente administrativo no Hospital Estadual Infantil Nossa Senhora da Glória.
Instagram da autora:
https://www.instagram.com/daniela.rvd/
Para conhecer mais sobre o projeto onde esse conto foi desenvolvido acesse o perfil do Grupo Beta de Teatro e da atriz e escritora Lorena Lima.
Instagram Grupo Beta de Teatro:
https://www.instagram.com/grupobetadeteatro/
Instagram Lorena Lima: https://www.instagram.com/lorenalima_atriz/
A 2ª edição da Oficina de Produção de Contos Femininos
Autoficcionais, onde esse conto foi desenvolvido, é uma ação cultural aprovada
no Edital nº 04/2023 – Valorização da Diversidade Cultural Capixaba, fomentada
na Linha 3: Incentivo à Leitura, da Secretaria da Cultura (Secult).
Um viva a todas as Celestes que nos transportam para outros mundos!!!
ResponderExcluirQue conto lindo!
ResponderExcluirDaniela, seu conto é cheio de belezuras e delicadezas. Parabéns, querida.
ResponderExcluirEu adorei! Ficou incrível
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