dor de crescimento
as pernas dela eram o dobro de mim. o sol se escondia atrás
de sua cabeça, e sua silhueta carregava graça. meus silêncios eram o dobro
dela, que andava a passos exagerados, como se só pudesse prestar atenção à
sanfona em suas mãos e à cantoria estridente que entoava. “olha”, cantava ela,
“eu nunca parei de crescer, mas também nunca deixei de brincar”. sorria e
balançava a calça colorida ao vento. sorria e balançava os cabelos coloridos ao
vento. a calçada que ocupávamos parecia um grande caminho. a figura à minha
frente era tão alta que me deixou fascinada e amedrontada. os sons que fazia
tornava as buzinas carros de propaganda gritos de comércio velocidade do mundo
menor. precisei inclinar o queixo pra cima para encará-la. eu, tão pequena… e
ainda menor que eu, mas tão grande para mudar o que se seguiria, era a pedra
que estava no caminho. sim, havia uma pedra no caminho, de formato hexagonal e
tão assustadora como a palavra hexagonal indica. a moça caiu feio, lá de cima
onde estava. suas pernas de pau rolaram no chão, como baquetas de uma bateria
que se recusa a tocar. tão rápido quanto a surpresa me permitira, me dispus a
levantá-la. a moça-sem-perna-de-pau já não era tão grande assim. na verdade,
ela era quase tão pequena quanto eu. uma lágrima colorida brilhou em sua
bochecha, mas antes que tocasse o chão já estava translúcida, como toda lágrima
é.
olhamos em volta, exasperadas, em busca do que a fazia grande. as pernas de madeira haviam rolado pela rua, disso eu tinha certeza, mas do momento em que nos concentramos em levantá-la, o trânsito da cidade deu um jeito de carregar o crescimento com ele. em um breve silêncio, saímos em disparada à procura da perna de pau. os carros com suas garras velozes quase nos alcançavam enquanto cruzávamos a avenida principal. não havia tempo para esperar o semáforo sinalizar a emergência. ele continuava verde, mas não para nós. uma espiada na moça-sem-perna-de-pau me fez piscar muitas vezes. precisava olhar melhor e confirmar o que nem sempre o olho dá conta de ver. suas lágrimas translúcidas, mas não só. o cabelo estava perdendo a cor e suas calças esvoaçantes pareciam se adaptar à sua atual condição, pequena e pálida. “se eu tivesse minhas pernas”, choramingou a moça, “ultrapassaria todos esses carros sem dificuldade”. e continuou semi-correndo, tão contida que parecia não se lembrar que já havia sido grande. cambaleando, a moça foi ficando para trás. a pus sentada em um canto e vasculhei a cidade com toda velocidade e calma que eu tinha. afinal, havia aprendido que a pressa é inimiga das velocidades.
à margem da rua, duas esquinas depois, as pernas estavam
lançadas à deriva, como se não pudessem ser grandes sozinhas. tratei de
agarrá-las e voltar pelo caminho que fiz. em cada curva, as pernas insistiam em
se manter retas, numa birra. suor (translúcido) pulava para fora do meu corpo
com o peso da madeira. quando alcancei o lugar em que havia deixado a moça,
para minha surpresa, ela já não estava lá. tive uma ideia, rápida, descabida,
urgente. sabia que eu só conseguiria achá-la se eu procurasse de cima. briguei
com as pernas pra que elas aceitassem ser uma extensão das minhas. apoiada no
muro mais próximo, flutuei até o alto das nuvens, até o topo das pernas. em
cima daquilo que não era eu, senti no estômago uma pontada de… decepção. lá de
baixo, apenas um olhar atento e um queixo inclinado poderia supor que no fim
daquele arranha-céus de pernas havia uma garota. a decepção foi perceber que
crescer não significa deixar de ser pequena. ali, era o contrário. tão
distante, eu era incapaz de ser vista. estava menor. andar com pernas que não
eram minhas doía. “talvez crescer não seja pra todo mundo”, pensei. caminhando
entre o fluxo desordenado de gente e de carros, um pequeno ser caído acenava
para mim. era a moça das pernas de pau. finquei as pernas num canteiro de
flores e pousei de volta ao chão. “o que está fazendo aqui?”, perguntei à moça.
“eu estou à procura de algo que perdi, e não consigo encontrar”, respondeu ela.
fiquei animada. “eu sei o que perdeu, eu trouxe pra você”. as pernas pareciam
menores quando lhe entreguei. talvez estivessem se ajustando ao corpo da moça,
sentindo falta dela também. ela vestiu as pernas de pau e o sol pareceu não
mais querer se esconder. “não é isso que estou procurando”. ela desceu e
segurou as pernas com as mãos. aquela sentença trouxe as nuvens de volta pra
mim. “como não? você parecia ter perdido parte do corpo quando as perdeu”. com
um suspiro e lágrima translúcida, ela respondeu: “eu aprendi a caminhar com
minhas pernas agora. aprendi a caminhar com o pé no chão, e sei que posso ter a
cabeça nas nuvens quando eu quiser. mas a sensação que busco… não é essa.”
mesmo frustrada, entendi. quando a vi pela primeira vez, me dei conta de que eu
também queria algo. algo que ela parecia ter encontrado havia tanto tempo que
já parecia dela… não, que parecia ela. minha missão não era apenas ajudá-la,
mas descobrir aquilo que eu ainda era metade. os silêncios se acumulavam em
torno de nós enquanto caminhávamos. eu, com tanta pressa, tão urgente, que só
poderia me arrastar lentamente. sem prever, estávamos de volta ao lugar onde
aquilo começou. a pedra hexagonal estava lá, assim como a sanfona caída.
em transe, a moça se aproximou da sanfona e deixou que ela a
tocasse. um brilho emanou do instrumento, a pele da moça, menos pálida, o
cabelo colorindo. a calça retornou à sua cor, como se tivesse contido em si as
cores do arco íris. minha tempestade havia passado. “era isso”, cantarolava a
moça, “ainda estou crescendo, mas não posso parar de brincar”. sorria e se
balançava ao vento. “obrigada”, ela me disse, com suas próprias pernas, “por me
ajudar a ver”. sorrindo, curiosa, perguntei: “encontrou o que buscava, certo?
como se sente?”. “sim”, ela disse. e com uma lágrima colorida saindo dos olhos
e se plantando no chão, ela me entregou o que eu buscava. “eu me sinto…
grande”.
CONHEÇA A AUTORA
Gabrielly Ramos da Silva
Psicóloga e artista, estudante do bacharelado em música na
ufes, poeta nada profissional. carrega o orgulho de ser amadora: escreve apenas
enquanto alguém que ama. moradora da região 3 de Vila Velha, traz em sua poesia
a experiência de uma identidade que vive na periferia do gênero e da cidade.
canta grande parte do que escreve, e escreve grande parte do que não consegue
cantar. ama as palavras e talvez ainda mais os silêncios.
Instagram da autora: https://www.instagram.com/a.garoar/
Para conhecer mais sobre o projeto onde esse conto foi desenvolvido acesse o perfil do Grupo Beta de Teatro e da atriz e escritora Lorena Lima.
Instagram Grupo Beta de Teatro:
https://www.instagram.com/grupobetadeteatro/
Instagram Lorena Lima: https://www.instagram.com/lorenalima_atriz/
A 2ª edição da Oficina de Produção de Contos Femininos
Autoficcionais, onde esse conto foi desenvolvido, é uma ação cultural aprovada
no Edital nº 04/2023 – Valorização da Diversidade Cultural Capixaba, fomentada
na Linha 3: Incentivo à Leitura, da Secretaria da Cultura (Secult).
Crescer dói mas também pode ser poético!
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