Vestido limão verde

de Érica da Silva Ribeiro


Estava tão pensativa hoje quanto no dia em que aconteceu. Curiosamente, usava também o mesmo vestido. As coincidências, no entanto, paravam por aí. Ou talvez não, não sabia dizer ao certo.

Sabia serem iguais algumas coisas: acordara cedo, fizera o café, vestira o vestido verde que separara na noite anterior, preocupada em deixá-lo fora do alcance da gata manchada que – não ironicamente – adorava manchar de xixi suas peças de roupa favoritas, e saíra de casa com um destino em mente.

Os detalhes eram diferentes (ou “a diferença estava nos detalhes”): naquele dia, acordara e não havia ninguém com ela na cama, apenas os três travesseiros que abraçava para dormir quando não tinha companhia. O café havia sido feito só para uma e nem mesmo conseguira beber todo o conteúdo da xícara, de tanta pressa que tinha, para não perder tempo.

Não havia mudado, do dia passado para o de hoje, a vontade de encontrar fora de casa o que não encontrava há tanto tempo dentro de si mesma, algo que nem mais sabia dizer que nome teria. Tristemente, daquela vez, o que encontrou foi dor. Não uma dor psicológica, à qual ela dizia já estar acostumada e mentia não se importar mais sentir… encontrou a dor da queda, da queimadura do asfalto quente, do desespero do motorista que, ao contrário dela, estava no seu último dia de trabalho. Enquanto o sangue escorria e a pele ardia, ela pensava em como o universo era traiçoeiro, sempre esperando o momento certo de mandar um veículo de duas rodas (ou um cachorro de quatro patas, como aconteceu uma vez) para jogá-la no chão quando ela se sentia no ar.

Hoje, não pôde evitar notar as semelhanças: outra vez uma manhã de sábado cheia de sol; outra vez um lugar para ir; outra vez uma busca de algo dentro de si. Ao se descobrir pensando nisso, quase decidira virar as costas e desistir, inventar uma desculpa qualquer para si mesma e voltar para dentro da própria concha. 

Mas, se tinha algo que a vida lhe havia ensinado era que, mais do que cair, ela sabia levantar. Levantara todas as vezes, mesmo naquelas em que fora atropelada. No fluxo intenso de pensamentos que a acompanhava para todos os lugares, escolheu hoje focar no que havia de bom. Sim, era de novo um sábado de sol – e o dia estava lindo! Tinha feito café, para ela e para o namorado, que ficara na cama junto dos travesseiros e das gatas, todos esperando pela volta dela.

Mais importante de tudo, conseguira chegar ao destino que queria. Dessa vez sem dor, sem nenhuma ardência além do sol aquecendo a pele. Tudo o que caíra hoje foi a caneta no chão agradavelmente frio de madeira e alguns farelos do bolo de limão verde claro, de sabor tão aconchegante quanto a sala que agora ocupava. 

Pensava muito, como sempre: em como estava bonita com o vestido cor de bolo, em como o novo álbum da Halsey era emocionante, em como o grupo era acolhedor e, acima de tudo, em quantos sábados de sol e calor ainda estavam pela frente, todos esperando. E agora, finalmente, ela sabia que queria muito a chegada deles. Não apenas para pensar sobre eles, mas também para vivê-los abundantemente.


CONHEÇA A AUTORA

Érica da Silva Ribeiro

Meu nome é Érica, tenho 28 anos e me mudei de Campos/RJ para Vila Velha no início do ano passado para atuar como professora de Língua Portuguesa na rede estadual. Estou aqui pelas praias, pelo movimento da cidade, pelo samba e pela educação.


Para conhecer mais sobre o projeto onde esse conto foi desenvolvido acesse o perfil do Grupo Beta de Teatro e da atriz e escritora Lorena Lima.

A 2ª edição da Oficina de Produção de Contos Femininos Autoficcionais, onde esse conto foi desenvolvido, é uma ação cultural aprovada no Edital nº 04/2023 – Valorização da Diversidade Cultural Capixaba, fomentada na Linha 3: Incentivo à Leitura, da Secretaria da Cultura (Secult).




 

Comentários

  1. Quanta delicadeza e força na sua escrita, Érica. Um presente, embrulhado por palavras sentidas. Obrigada por tamanha beleza em sua escrita.

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  2. Desejo dias solares, como este conto!

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  3. a esperança de um próximo sábado de sol me parece uma boa razão pra levantar outra vez

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  4. Acabo de descobrir que uma peça cor de bolo no meu guarda roupa é uma necessidade 🤧 esse conto tem cheiro de caos seguido de paz!

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  5. Nem tudo no caos é caos! Conto incrível

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