A Escrita e o Sagrado no Baú da Memória

 


Buscando um início para este texto, dei partida a uma procura no baú da minha memória pelo momento em que começou o meu processo de escrita. Então encontrei que antes de escrever minhas primeiras letras com a guiança de minha mãe (pedagoga e minha primeira professora de vida e alfabetização), eu era/sou sobretudo imaginativa. As primeiras imaginações não foram escritas, às vezes se materializavam nas brincadeiras com as bonecas, outras não.

Ainda hoje, sou mais inventiva que escritora. No entanto, achei algo ainda mais anterior que minhas primeiras criações mentais: minha ancestralidade, mais precisamente, a matrilinear. Como já disse a vocês, minha mãe é amiga das letras, porém, minha avó materna não. Minha avó paterna faleceu quando meu pai tinha 4 (quatro) anos de idade e não sabemos sobre sua (não) grafia. Tendo essas coisas em mente, as questões que me ficam são: o que minhas avós escreveriam? Quem calou a voz de suas mãos?

Na infância, não me recordo exatamente a idade, mas desde muito nova, perdia-me, ou melhor, encontrava-me na minha imaginação fértil, a criar histórias diversas. Era um movimento espontâneo que me conectava a um outro mundo, a partir da minha realidade, mundo este que eu trago comigo de um passado primordial e/ou ancestral, que não existia e, por isso mesmo, talvez já tenha existido ou eu faria existir. Lembro-me de passear pelo sítio de minha avó materna, sentar no tronco dos pés de jaca ou de manga para contar minhas fábulas para mim mesma, em um silêncio acolhido pelo ar fresco e pelo céu azul.

Ainda criança, por vezes pegava os livros que tinha em casa e lia não somente as histórias escritas como também as ilustrações, criando outras versões, mais minhas. E assim lia as plantas, as flores, os objetos de casa, além das bonecas, todos vivos na minha imaginação. Criava relações mais agradáveis, sem arrogâncias e vaidades, entre bonecas e bonecos. Interações utopicamente justas, equilibradas e harmônicas que vieram a se tornar em maior parte reais nas sortes que eu tive na vida!

Esse era o tema central das minhas criações durante as minhas brincadeiras: as amizades e os namoricos (o que incluía os primeiros pensamentos a respeito da sexualidade). Muitas vezes as compartilhava com outras meninas, que aceitavam realizar o que eu sugeria. Isso durou até que minha mãe sumisse com meus brinquedos, visto que eu já tinha 15 (quinze) anos de idade. Ou pelo menos foi o que ela acreditou ter feito, sem conhecer a vasta imaginação que eu tinha/tenho e que traria minhas bonecas comigo até os dias atuais.

Em razão da presença de minha mãe enquanto professora, aos 4 (quatro) anos de idade eu já lia e escrevia, práticas que viriam a ser as minhas prediletas na vida. Amava ler fábulas e gibis. Na adolescência, eu visitava a única biblioteca da minha cidade (Itajuípe-Ba) com uma amiga, escolhendo os livros sobre bruxaria para as leituras, enquanto a praticava com outra amiga querida entre árvores, borboletas, revistas, Astrologia, rock’n’roll e vinhos.

Essa era a temática que predominava também nos filmes escolhidos. Os seres míticos e também os fatos históricos sobre as chamadas “bruxas” sempre me fascinaram – e eu digo “sempre” por desconhecer a origem do fascínio. Aos 18 (dezoito) anos ingressei na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) para cursar a licenciatura em História, intensificando assim a minha relação com a escrita, para além dos diários, agendas e caderninhos.

Na licenciatura em História, comecei a desenvolver uma pesquisa a respeito do Povo Indígena Tupinambá de Olivença (Ilhéus-Ba), inicialmente sobre sua espiritualidade, mais tarde também sobre identidade e mobilizações, coisas que para as/os indígenas não estão tão separadas. Pesquisei a partir de suas oralidades, especialmente. Assim, os encantados (os seres que habitam tudo na Natureza) estiveram presentes nos lugares em que estive, nas pessoas com as quais estive, em suas memórias, oralidades, nas transcrições das entrevistas e nas minhas escritas. Sempre evoquei e invoquei suas presenças em toda a pesquisa e produção textual. Foi a maneira que encontrei de continuar próxima aos seres míticos e terrenos e das “bruxas” indígenas (que preferimos chamar curandeiras, erveiras, rezadeiras e guerreiras). A imaginação e o misticismo ganharam uma dimensão ainda mais real e política.

 A temática esteve relacionada a interesses de cunho pessoal. Meu primeiro contato com povos indígenas ocorreu em 2009, quando visitei a Aldeia Pataxó de Imbiriba, no município de Porto Seguro/BA. Isto porque meu pai morou nesta aldeia entre 2006 e 2010, na condição de motorista a serviço da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Foi no início do ano de 2009 que conheci e acompanhei o awê, ritual Pataxó, uma experiência que estimulou o meu interesse pelos modos de ser e viver daqueles indígenas. Estas relações contribuíram para que eu percebesse diferenças no modo de viver dos indígenas com relação aos não indígenas, tendo aqueles muito a nos ensinar. 

Durante a pandemia eu me reaproximei da escrita, no entanto, para realizar um desejo distinto e ao mesmo tempo mais antigo que eu tinha que era/é o de escrever textos astrológicos, especialmente horóscopos. Eu acredito na Astrologia como uma comunicação descoberta, com direito a Mapa, entre o Céu e a Terra. Os eventos não deixam de acontecer quando não acreditamos nesse saber ancestral muito antigo, mas eu sinto paz quando percebo que alguns deles estão previstos, uma sensação de que está tudo bem, como planejado por uma sabedoria maior. Também me preparo para acontecimentos, enquanto vejo descrentes na Astrologia se entristecerem ou odiarem para além do saudável. Eu quis/quero que a minha escrita vá além da ideia de previsão, sendo poética e literária. 

A partir desse sonho que trago comigo desde a infância – ainda que não tão delimitado quanto no dia de hoje, comecei a fazer cursos de Escrita Criativa. Foi quando me deparei com a proposta “Só conto para elas: Oficina de Produção de Contos Femininos Autoficionais” passando na minha timeline! Fiz a inscrição e fui sorteada para participar! Foi um encontro maravilhoso, guiado pela Lorena Lima, uma pisciana amorosa, divertida e criativa! No qual me encontrei também com mulheres de lutas, de política, de força, de afeto e de energia! Além de aprender mais sobre a escrita de contos, vivenciei dias de estar com um grupo de mulheres que se acolheram mutuamente. Fui tomada pelo desejo de escrever sobre algo que me inquieta/inquieta que é a questão da alimentação digna, que em tempos de um desgoverno planejado, tem sido um privilégio. Não perdi o sagrado de vista: estar em coletivo com mulheres é sagrado, a Arte é sagrada, alimentarmo-nos é sagrado.


Tamires Andrade é professora historiadora. Pesquisadora das questões indígenas e membro do GEHITA (Grupo de Estudos Históricos de Itajuípe) a partir do qual iniciou, em 2019, pesquisa na área da História das Mulheres. É feminista anticapitalista e compõe junto a outras mulheres o Coletivo Filhas da Sol. É Designer Gráfica iniciando uma pesquisa autônoma sobre mulheres brasileiras no Design Gráfico e uma rede de apoio para mulheres designers gráficas. É astróloga, crocheteira e bordadeira.  


Para ler o conto Piripaque de Morango de Tamires Andrade, acesse o link 👇 

https://docs.google.com/document/d/1IzNSOE2wLbuL9BWKoEJA8vBFdDcjNZW1/edit?usp=drivesdk&ouid=110723866909158484159&rtpof=true&sd=true

 


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