Autoria, Escrita e Bonecas Extraordinárias

 


Depois da morte do autor e de sua ressurreição extracorpórea nos limites de uma teoria linguística e literária, hoje talvez estejamos testemunhando não apenas o renascimento da autoria dos textos, como sua fascinação, fetiche e obsessão. Uma obsessão pela nossa identidade, para muito além do sujeito universal masculino. Um fascínio que também tem a ver com a sobrevivência: quem somos, o que não queremos, pelo que lutamos, como seremos vistos, qual será nosso legado, de que natureza somos feitos. Um dia falarão de nós: nome, sobrenome e obra. Também estou trabalhando incansavelmente para dar um significado duradouro ao meu trabalho. Achava que era presunçoso, mas entendi que é tudo o que tenho. Um nome pode virar facilmente vaidade, ou assumir a sua verdadeira expressão, a de criar conexões e formar uma ciranda. Um nome ao lado de outro que dá relevância àquele e assim por diante em um colar infinito de possibilidades e criações: somos bem menos autênticos do que imaginamos. Somos citações!

Assino Lívia Rangel, porém entre um e outro há mais dois sobrenomes: Azevedo Silveira, os quais dão (com o ar de sua graça) longitude ao primeiro. Quando são textos acadêmicos prefiro o nome completo, comprido do jeito que é - inconfundível! No entanto, quando quero chegar mais rápido opto por encurtar a rota de como me chamam. Definitivamente, minha mãe não fica muito feliz, e com toda razão. Ela há de entender, são métodos. Fracionamos para "vender" melhor (embora minha conta bancária discorde de estar dando certo, mas isso porque ela só pensa em dinheiro). 

Minha história com a escrita começa com a leitura. Acho que começa antes disso, começa com a música. Não. Certamente começou antes, com os brinquedos e a vontade de fazê-los acreditar que eram mais do que plástico moldado. A coisa veio tanto daí, da atividade lúdica, que o plástico logo me desinteressou e eu fiz bonecas de papel que pudessem assumir a forma que eu quisesse, com cabelos e cores diferentes, roupas novas para usar que não podiam reclamar nunca da falta delas. Bonecas extraordinárias que pudessem ter relações abertas e fechadas, beijar mulheres e homens, eu queria a liberdade de ter algo tão meu que se outra criança pegasse não saberia o que fazer com aquilo. Passei mais de dez anos inventando a história das minhas bonecas de papel, elas cresceram comigo, os temas de suas conversas e dramas foram mudando e tomando o ritmo do meu próprio processo de amadurecimento no mundo. E então me despedi, em um ritual muito sério e doloroso, mas convicto de que era a hora. 

Meu enredo era tão suficiente com minhas bonecas de papel que, embora fosse uma leitora mirim muito hábil, foi só depois que desfiz este vínculo profundo que comecei a encontrar bem devagar refúgio na leitura, porque definitivamente minha vida adolescente não era muito interessante. Ainda que eu me esforçasse para fumar escondido e criar vícios inexistentes, eu nunca consegui atingir a fama de uma adolescente problema, como nos filmes. Não tinha talento. Era e sempre fui uma boa moça de couraça malvada e coração acolhedor. Sabia desde cedo que para ser feliz eu precisaria ter sempre por perto uma "máquina de escrever", canetas, blocos de papel, livros e música. Tornei-me historiadora e desisti completamente da carreira de jornalista, que era minha primeira opção. Ser historiadora eu nem sabia que era possível. Escritora eu sempre soube que era impossível. 

Fiz praticamente todo o meu percurso acadêmico ocupada com o estudo de mulheres. Pesquisei representações na imprensa, feminismos, produção intelectual, militância política, exílio, fotografia, sempre com a questão das relações sociais de gênero no horizonte. Eu estava aprendendo e comecei também a ensinar. Foi assim que escrever deixou de ser apenas um exercício de sustentação emocional intermitente e tornou-se parte substantiva da minha profissão. A cada vez que um artigo ou capítulo saía publicado, apesar do sofrimento antecedente que não deixa de fazer parte do processo longo e muitas vezes tumultuado de escrita de um material científico, eu sentia êxtase, uma espécie de satisfação tão intensa quanto passageira. E logo eu me lançava num próximo e trabalhoso projeto. Acho que toda pessoa que escreve tem a inquietação como característica comum, tem a alma investigativa, não exatamente curiosa, mas intrigada. Que merda faço com isso que estou sentindo, com isso que estou pensando? Tudo vira ideia, tudo merece atenção. Nunca lidei muito bem com este aspecto da coisa. Agora, ao contrário, sinto menos medo. O cavalo desgovernado dentro de mim, que saía dando coice e cavalgando em linha reta, agradeceu quando eu o acalmei e disse: "descansa, agora deixa comigo". Juntos estamos desbravando trilhas que antes pareciam um espanto, um território de bruxas, caçadores e seres de aspecto bizarro. Quanto mais embrenhados, menos assustadoras todas essas entidades se apresentam. E então, mais do que isso, percebemos tudo de maravilhoso que há em ser um ente bizarro de aspecto, caçadores de algo e bruxas sábias de feitiçarias. Isso é escrever. 

Oportunidade de escrever, sempre que posso, aproveito todas, principalmente durante a pandemia. Essa catástrofe descontrolada, mal gerida, e que aqui no Brasil de problema sanitário transformou-se em pauta política e política de morte, me paralisou e depois me deu um choque tão grande que comecei a pensar que eu não tinha mais o privilégio do tempo para me privar da escrita como um desejo seminal. Quando circulou e caiu na minha mão a chamada para a oficina de contos autoficcionais que a querida Lorena Lima idealizou e ministrou, não tive nenhuma dúvida de que era a tal oportunidade que poderia me colocar em marcha. Alguma ideia eu tinha sobre o que significava escrever um conto autoficcional, mas de repente eu não estava tão disposta a explorar esses recônditos. Um grupo impressionante de mulheres artistas, escritoras, estudantes se formou e elas estavam comprometidas com a entrega. Inesperadamente eu relutei. Não sei bem a razão e não quis me cobrar explicações. Escrevi um conto que estava na minha cabeça desde muito tempo, narrava um evento da madrugada que havia experimentado em uma noite da minha vida universitária em Viçosa. O que me eriçou mais os pelos do braço não foi o caos de barulhos ensurdecedores na escuridão, mas o silêncio pesado da manhã seguinte. Muito parecido com o que ocorre quando coletivamente vivemos um trauma. Isso veio encaixotado na minha mudança de Viçosa para todas as outras partes em que morei. E saiu durante a oficina, como se neste momento eu pudesse reviver a ficção daquela noite. Foi o que tive a oferecer naquele momento. Literatura e psicanálise, aliás, deveriam ser ensinadas em concomitância. Não vinga, porque muitas almas centenárias desceriam ou subiriam de onde estivessem repousando eternamente para nos castigar a heresia.

Lívia Rangel é historiadora, nascida norte-fluminense, crescida e amparada em terras capixabas e estudante por alguns anos nas paragens mineiras e paulistas. Pesquisadora das temáticas feministas na cultura, na política e nas artes. Publicou livros, como “Um capixaba entremundos” (2018) e “Intelectuais fronteiriços” (2019). Organizou, em coautoria, o livro “Mulher e gênero em debate” (2014). É Curadora de ideias e idealizadora do perfil   https://www.instagram.com/mulheresdeescrita/ e parceira do projeto https://www.instagram.com/palcohistoria/

Para ler o conto MOTIM DOS DEUSES acesse o link 👇

https://bandeirasecacarolas.blogspot.com/2021/09/motim-dos-deuses.html


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